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quarta-feira, 3 de setembro de 2025

FLOR DE PITANGUEIRA



Ali por meados dos anos 90, na Ilha de Itamaracá, encontrava diversão entre acampar, e uma casa de veraneio. Nossa turma do bairro, e da escola, fincávamos uma barraca de camping entre Jaguaribe e o Pilar, sempre com a desculpa nobre da pescaria de rede de arrasto. Na prática, era mais conversa fiada, e bebedeira, do que pegar peixe, mas só o ritual de entrar juntos no mar, puxar a rede e discutir quem estava atrapalhando o serviço já valia a viagem.

À tarde, invariavelmente, em nossas voltas pela ilha, descobríamos casas com quintais murados de pitangueiras, coco, araçá e caju. Aquilo era um convite irresistível. Pitanga não se comprava — se conquistava. E nós conquistávamos com sacolas cheias, como se tivéssemos roubado um segredo da própria natureza. As manchas vermelhas nos lábios denunciavam a farra, mas quem se importava? Pitanga é dessas frutas que até no crime tem inocência.

Foi ali que descobri, entre uma sacola e outra, a flor da pitangueira. Não tinha a pompa dos ipês, nem a pose das helicônias. Era miúda, branca, quase um suspiro. Se a fruta é a festa, a flor é a oração antes da refeição. Descobri que, para notá-la, era preciso parar, baixar os olhos, prestar atenção. Não era para qualquer um. A flor parecia me ensinar que a pressa é o inimigo número um da beleza.

Com o tempo, percebi que havia uma filosofia inteira escondida naquela árvore. A pitanga nos sacudia de alegria imediata, mas a flor era outro departamento: o da promessa silenciosa. E talvez aí esteja a verdadeira lição. Porque, convenhamos, se a vida fosse só festa de pitanga, a gente não aprenderia nada além de chupar caroço. A flor lembra que há delicadezas invisíveis sustentando toda abundância.

É como se a própria natureza risse da gente: dá um fruto que mancha roupa como sangue, mas que ninguém consegue parar de chupar. E é também como se ela sussurrasse baixinho que, por trás do espetáculo, há sempre um chamado mais profundo — quase como se cada pétala fosse um lembrete de que o espírito precisa tanto de silêncio quanto de sabor.

Já eu, que aprendi com a flor, diria que ela é a parte mais reveladora da história. Porque no silêncio daquela brancura escondida, percebi que o mundo nos oferece pequenos convites de eternidade. A vida, afinal, não é só colher sacolas de pitanga. É também saber parar, respirar fundo, e reconhecer que até a coisa mais miúda pode ser uma janela para o infinito.

Então, se um dia você passar por uma pitangueira, não vá direto aos frutos como quem corre para o carnaval. Primeiro, procure a flor. Respire o perfume leve. Talvez descubra, como eu descobri em Itamaracá, que a maior riqueza não está no que se colhe, mas no que se promete.


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