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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Visita ao consultório

Já faz muito tempo que não procuro Dr. Fernando. Desde a última vez em que o encontrei atolado em dívidas e revoltado com o síndico e a ex-mulher. O último contato que tive foi através de sua carta que publiquei no site.

Bem, a única pessoa com quem posso conversar sobre determinados assuntos, sem dúvidas, é ele. Foi por isso que liguei, na semana passada, marcando uma consulta. Notei algumas mudanças como a atendente que já não era mais aquela voz tão familiar que costumeiramente atendia ao telefone do consultório com um mal-humor incrível. Logo pensei que Dr. Fernando teria, de alguma forma, demitido a ex-esposa do cargo de secretária e se livrado de um de seus grandes problemas, o que já era uma evolução significativa.

No dia marcado, já no consultório, encontrei uma nova secretária. Bonita, jovem, sorridente e dinâmica. O consultório estava com um ar mais jovial também, com novos móveis e antigas revistas mais recentes, acho até que para não perder a tradição de consultórios. Outro grande passo: deu fim àquela pilha de revistas Manchete. A jovem confirmou o horário, levantou-se e me indicou onde sentar para aguardar ser chamado. Tudo com uma gentileza quase familiar, ou estranhamente me tratasse como um senhor de idade bem avançada.

Sentado ali na sala de espera pensei que poderia não ser o consultório do Dr. Fernando ou que o Dr. Fernando poderia vir a ser qualquer outro Fernando, menos o meu grande amigo Dr. Fernando... mais uma dessas maluquices que vão nos assombrando silenciosamente. Até que a porta se abriu e Dr. Fernando surgiu de seu interior com aquela mesma feição de sempre. Adentrei o recinto que agora se encontrava mais iluminado, com mais verde e uma singela harmonia entre a disposição dos elementos decorativos.

– Ouvi o que você me disse Júnior e procurei mudar. Eu precisava mesmo daquilo. De encarar de outra forma aquela situação. Não sei se o problema é de retina ou de paradigma. As imagens que nos chegam e de como processamos as informações turvam a verdade que está a nossa frente. São fatos.

– Sabe Dr. Fernando cheguei a essa conclusão também, mas por outros caminhos. E queria questionar isso propondo... A quem compete solucionar o problema da falta de resistência à abstração que representa o poder do dinheiro?

– Bom... o lucro é, inevitavelmente, decorrente de toda operação econômica, seja ela agrícola, industrial, comercial, proveniente da prestação de serviços ou oriundo da sobra de caixa do terceiro setor, sem falar no caixa dois das campanhas, né?. Isso é normal. De anormal é que se observa um número cada vez mais crescente de relações humanas sendo corroídas pelo mercantilismo das emoções em troca dessas posses materiais. E ao mesmo tempo em que a sociedade exige a fidelidade promove a distância de interesses. Se a propaganda é a alma do negócio, e a concorrente pode oferecer mais benefícios pelo mesmo valor gasto, por quê sofrer? Então me entrego a quem me oferece mais. Veja por exemplo essa jovem aí fora. Bonita e fogosa, cheia de vida. Você não sabe o número de novos clientes que eu obtive depois que ela chegou aqui. Homens, e mulheres também. A psicanálise, por exemplo, precisa de novos adereços... novas fórmulas. Eu as aplico e com isso agrego valor, e cobro muito mais. Tudo aparência meu filho. Onde quero chegar? Bem, o dinheiro é bom. Só que as pessoas perderam a noção de como obtê-lo com o próprio esforço. Faço isso conscientemente. Mas tenho minhas reservas, senão mifú! Você entende...

– O sr. tem acompanhado a CPI, Dr. Fernando?

– Mais claro! Inclusive muitos dos meus pacientes me procuraram com medo de terem seus nomes citados indiretamente nessas listas que correm por Brasília, simplesmente porque não sabem por onde andam as notas fiscais emitidas com valores superfaturados, meu querido. Muitas empresas lá fora, passando recibo aqui. Isso existe?

– Tanta coisa atrapalhando a minha vida e o senhor está me dizendo que aqui...

– Ora! Não se esqueça que estou a muitos anos nessa área. Quantas crises já se passaram em meu divã? E quer saber? Sua resposta é Jesus. Sim, só depois de muitos anos é que vim ver que aquele maluco estava certo. Resistir ao Capital? Só por motivos nobres, sublimes...

– Mas doutor o senhor está indo para outros caminhos que...

– Ora, Júnior! Não me venha com parcas idéias agora. Deixa eu te contar uma coisa. A gente sempre jogou aberto aqui. Não é que eu mudei. Não! Eu não cedi ao sistema. Na verdade ele é uma ilusão que criamos para mantermos nossa segurança mental.

Reservas, querido. Passo a acreditar que é assim que as coisas funcionam, os outros fingem que é assim que as coisas funcionam e no fim o que nos resta é o que fizemos com as nossas mentiras. Você perguntou sobre a CPI? Sobre atolar em merda nossos ideais por causa do dinheiro que muda de mão. Estou te dizendo o que todos me dizem aqui. Dinheiro é bom. Só que ninguém sabe o que fazer com ele. Cada qual com seus problemas. Eu não curo ninguém rapaz!!!

– Cada vez tenho mais certeza disso, doutor.

Depois dessa conversa deixei marcada uma outra consulta. Bom... da próxima vez acho que vou querer saber uma verdade menos inquietante.

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