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LIVRO

A ÚLTIMA BALA DO TAMBOR
(Autor: Júnior Soares)

'...não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que - para o bem contar e falar - o saiba pior que todos fazer!' Trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei D. Manuel, 1500.



Cartas já não adiantam mais...
Roberto Carlos



Capítulo I

Pela terceira vez o telefone celular tocou e me despertou naquela manhã chuvosa do mês de julho. Levantei-me para procurá-lo pelo quarto e o encontrei por detrás do criado-mudo. Ao atender logo reconheci a voz de Heloísa que de pronto perguntou se eu poderia falar-lhe. Antes de responder que sim, todo o tipo de sentimento me invadiu tomando de assalto minhas melhores, e piores, lembranças. Olhei para um lado e vi meu reflexo no espelho, notei que o tempo havia passado, que os cabelos brancos e a barriga surgiram surpreendendo-me, e ao olhar para o outro lado vi a cama onde estava a mulher com quem decidi seguir o que o destino me reservara.

Estranho ter tido aquela reação porque não era a primeira vez que alguém que havia compartilhado comigo de boas experiências no passado, por algum motivo, me procurava novamente, às vezes, até, batendo à porta de minha casa. Quando confirmei que poderia falar já me dirigia ao banheiro do corredor que fica do lado oposto ao da suíte. E ali pude notar que aquela voz que antes sempre soava suave e em tom inteligentemente divertido, agora estava trêmula e colérica. Não entendia bem o que ela dizia. Nada fazia sentido e, ainda, por quê - depois de tudo -, ela me procurava? Só entendi como ela conseguiu o novo número do meu telefone particular depois de algum tempo quando parou de soluçar. Precisava de ajuda. Algum tipo de ajuda, e precisava ser o mais breve possível. Pedi que me ligasse no trabalho e ela concordou dizendo já ter o número também - o que já era outra surpresa para mim. Marcamos então para as três da tarde.

Aquele foi um dia atribulado. As rádios noticiavam a situação caótica em que se encontrava o trânsito com muitas avenidas completamente alagadas por quase todos os bairros, canais transbordando, rios ampliando, à força, suas margens e o lixo se expondo para denunciar porque as águas não seguiam o percurso natural. Não poderia deixar de notar os oportunistas de plantão descolando um trocado quando um ou outro automóvel não conseguia transpor os rios perenes em que se tornavam as vias públicas nesses dias. A transigência não se instalava em nenhum momento do percurso de três quartos de hora, que separava minha casa do trabalho; creio que pela ansiedade, que talvez consuma mais a alma que a própria solidão. Chegar atrasado ao trabalho era apenas um detalhe. Pior foi a notícia de que bairros inteiros estavam no 'apagão' decorrente de uma sub-estação da concessionária de energia elétrica que teve sérios problemas com o volume de água que se preciptou toda a madrugada daquele dia, dando a entender a natureza do problema do black-out. Uma hora e quarenta e cinco minutos depois pude me sentar diante de minha estação de trabalho.

Quando o relógio acusou quinze para as seis da tarde, eu nem havia me dado conta que ainda faltava emitir um relatório para duas filiais da empresa. Copiei e colei uma seqüência de fórmulas do relatório do mês anterior e inseri alguns dados que resultaram em um valor real exorbitante. Algo estava errado. E era preciso corrigir, ou começar tudo novamente, antes de enviá-lo. Não lembro bem se era o prazo de entrega ou o pôr do sol que já se findava, mas me dei conta de que a única luz naquele ambiente era irradiada de um monitor de computador antigo. Tomei um susto quando o telefone tocou e me fez despertar mais uma vez naquele dia, o que já denunciava a situação complicada em que me encontrava. Com certeza a outra ponta estaria me cobrando um relatório que, de minha parte, faltava pouco para fazer "bater" tantas informações. No entanto, alguém pedia desculpas por Heloísa não poder ter ligado e apenas informou em que hospital ela estava internada desligando sem que pudesse saber o que havia acontecido. Logo após um intervalo de eternos segundos em que estive mergulhado no vácuo da compunção ante a notícia recebida, mais uma vez o telefone tocou, me trazendo de volta à realidade; pensei que a ligação tivesse sido cortada e que a pessoa havia retornado para completar a informação mas, agora, era a secretária informando que não podia aguardar mais, pois tinha um compromisso agendado. Bem, eu havia recebido seu e-mail no início da semana, só não imaginava que teria algum contratempo justamente naquele dia. Despediu-se com a cordialidade de sempre, e mandando beijinhos para a minha esposa com aquele sorriso que me era bastante familiar, foi embora apagando as luzes do corredor central.

Levantei-me porque já não aguentava mais e fui ao banheiro, acho até que, pela primeira vez depois da ligação que recebi pela manhã. A bexiga apertada e o formigamento nas pernas denunciavam os abusos que cometia por passar tanto tempo sentado. Sabia que estava sozinho e deixei a porta entreaberta. Não foi tempo suficiente para abrir o zíper e logo o telefone tocou. Ali em pé tinha de decidir rapidamente entre relaxar ou atender aquela ligação. Corri e peguei o telefone. - Já está vindo, amor? Aquela voz me acalmava sempre nas horas mais cruciais. A Luiza, minha esposa, sempre me questionava se já estava me dirigindo para casa. E não sei porquê isso muito me inspirava. E acho até que ela bem que sabia disso. Mas não naquele dia. Eu estava preste a ir de encontro ao meu passado como se fosse a única porta a ser aberta para o meu futuro. A chave estava num hospital, internada por algum motivo que não sabia qual era e eu ainda precisava validar aquele relatório que nunca chegava ao fim. Passei a me questionar se existia a razão daquele trabalho todo. E todo tipo de questionamentos como é comum acontecer nesses momentos invadiam minhas idéias, conturbando os resultados. - Está vindo? Repetiu a Luiza.

Expliquei a Luiza a situação delicada em que me encontrava. Mas omiti que teria um encontro dali a pouco. Não se explica essas coisas com tanta facilidade em momentos como esse, e é preciso ter uma habilidade descomunal com as palavras para não revelar a causa de tanto contratempo. E assim o fiz sem nenhum peso na consciência. Fiquei de retornar a ligação em meia hora no máximo e voltei ao trabalho, não sem antes passar mais uma vez pelo banheiro.

Nessas horas tudo acontece. Comigo aconteceu de pifar o monitor. Simplesmente queimou no momento em que estava anexando o arquivo do relatório ao e-mail. Corri até a mesa da secretária desconectei os cabos e removi um monitor que era duas vezes maior que o meu. Enquanto atravessava o corredor escuro carregando-o com o maior cuidado do mundo, ouvi tocar mais uma vez o telefone da minha sala. Ainda cheguei a chutar algumas cadeiras e antes de atendê-lo, esperei tocar mais uma vez. Minha voz estava no mesmo rítmo de minha aceleração cardíaca. Sim, estou enviando em dois minutos, é só o tempo de... Ok! Copio sim. Sem problemas. Quer que copie para mais alguém? Ah! Então tá bom... Ao dizer isso não pude deixar de rir, porque lembrei de uma conversa que tive com a Heloísa muitos anos atrás onde ela me dizia que ao telefone "então tá bom" significa "desliga logo, porra"! De certa forma, eu concordava.

Montei o monitor em meu micro e antes de enviar o relatório por e-mail abri a janela que ficava mais próxima e respirei o ar que atravessava todo o oceano até chegar ali. Pensei um pouco sobre onde se originava e aonde viria morrer para dar continuidade a vida. Como é do procedimento mandei imprimir duas cópias do relatório. Uma a ser enviada por malote e assinada por mim, outra apenas para arquivo, como forma de segurança.

Parei um pouco pra pensar em tudo o que estava acontecendo naquele dia, e no que era preciso dizer a Luiza. Então liguei e a convidei para jantar num restaurante próximo ao meu trabalho. Marquei às nove horas. Eu teria tempo de visitar a Heloísa em aproximadamente quarenta e cinco minutos e chegar ao restaurante um pouco antes e com uma boa desculpa. Ela aceitou o convite.

Na recepção do hospital me informaram que a paciente do 1304 ainda estava sem condições de receber visitas, pois havia perdido o bebê. Bebê? Ela estava... grávida? Enfim, conseguira o que mais sonhava na vida. E logo imaginei o quanto isso abalava emocionalmente uma mulher naquela idade. Não pensei em outra coisa além de flores. Flores do campo. Era disso que ela gostava como sempre me contava de seus passeios de bicicleta em algumas cidades da Europa, onde isso ainda é possível de ser desfrutado. Enquanto me passava na cabeça as lembranças de suas descrições a atendente me informava que o choque havia sido muito grande, e que não estava ainda em estado de receber visitas segundo ordens da equipe médica que a atendeu desde a entrada pela ala de emergências. Fui convidado a visitá-la no outro dia. E decidi, então, levar-lhe flores do campo, nacionais, por motivos óbvios.

Quando a Luiza chegou no restaurante eu já tinha tomado duas doses de whisky para iniciar um sério diálogo. Mas ela chegou com uma beleza tão estonteante, que só lembro de ter visto duas ou três vezes desde que a conheci. E enquanto ela se aproximava, flashes explodiam dentro de minha cabeça, trazendo à tona toda a sedução que ela exercia sobre minhas resistências. O primeiro momento foi quando a conheci em sua vernisage, onde ela estava mais radiante que os três quadros que adquiri, confesso que por mero interesse na artista. O segundo momento foi o de nosso casamento, quando pude ver todo o brilho de um olhar em plena realização. E o terceiro, o qual nem deu tempo de relembrar com mérito, pois fui tomado por um beijo como se fosse a despedida de dois amantes sedentos de desejo. Sem entender sua iniciativa, mas adorando tudo aquilo, ou sob o efeito do whisky, deixei acontecer. Não falei sobre o meu dia e ouvi tudo o que ela me dizia. Até hoje não sei se ela falava devagar ou se eu entrei em um transe no qual me deslocava do centro e observava a radiação em seus olhos, seus lábios, seios, mãos... Nunca tive coragem de perguntar. Mas não hesitei quando, depois do jantar, ela me convidou para irmos a um motel.


Capítulo II

II


Cheguei ao Hospital até que um pouco mais cedo do que a hora de Dona Isabela, a minha secretária, chegar - em outro ponto da cidade - ao escritório. Na recepção, logo recebi a notícia que a paciente do 704 havia sido transferida para a clínica do próprio grupo hospitalar. Liguei para a clínica antecipando a notícia da minha visita e recebi da atendente a confirmação de que estava sendo aguardado no quarto 12.

Fiz todo o percurso, entre o Hospital e a clínica a pé, muito embora a distância fosse desconsiderável. Levaria mais tempo retornando as vias que davam acesso a rua de mão única a que me destinava se fosse de carro, principalmente porque as ruas permaneciam alagadas, também, naquele trecho. Há muito não exercitava a caminhada. Fora de forma, carregando a pasta de trabalho dependurada em um ombro e carregando um buquê, em meio a tantas calçadas mal acabadas, ou destruídas pelas raízes das àrvores, além daqueles transeuntes desatentos; tropeços foram inevitáveis.

Ao chegar no luxuoso saguão da clínica fui recepcionado por uma moça sorridente, que procurava dar ar de que tudo estava tranqüilo mesmo sabendo-se que ali só eram atendidos os casos mais graves advindos do Hospital. Pela estrutura física e humana que impactava, notava-se que ali não eram atendidos os pacientes do SUS, ou de planos de saúde como o que a minha empresa oferecia. Ao perguntar pela paciente do quarto doze a jovem prontamente levantou-se com um 'pois não, Sr. Roberto Meira' e me acompanhou até a entrada de um corredor que ficava ali perto, apontando a sala de espera na qual eu deveria sentar-me e aguardar a saída da enfermeira que estava medicando a Sra. Heloísa. Aquiesci e segui atravessando o corredor até chegar ao quarto 12. Sentei-me e mergulhei o olhar nas flores do campo que aparentavam ter sofrido com a agitação do percurso. Observei rapidamente o ambiente e senti o clima de tranquilidade que tudo ali comunicava, e concordei com o sorriso da atendente. O clima ali só era quebrado apenas quando passavam, pelo corredor, enfermeiros e médicos em conversa agitada sobre a descrição de algum tratamento. A porta se abriu e uma jovem enfermeira saiu sorridente de dentro do quarto, - Apesar de tudo, ela está muito bem. Parabéns!! O senhor vai ser pai de um milagre.

- Pai? Não, não, eu...
- Vamos, entre Roberto! Disse a voz lá dentro. Era a Heloísa, que apesar de um ar fragilizado, se mostrava bastante otimista diante de tal situação.
- Eu não estou entendendo nada...
- Eu vou te explicar. Mas antes, como está a Luiza? E você, hein? Que barriga ridícula é esta? E como envelheceu nesses anos... e essas flores murchas aí, são para a Luiza?

Ela sempre conseguia quebrar o clima. Fiz gestos de que, lógico, eram para ela mesmo, e coloquei em um vaso disponível no quarto. Olhei-a profundamente com compaixão e ela expressava a mesma ternura de sempre. Sem saber o que dizer nessas horas, questionava-me silenciosamente como perdera o bebê? Mas fui parabenizado, como assim? E o pai? Quantas histórias ela teria a contar-me. Pedi só um minuto e liguei para o escritório.

- Dona Isabela, estou resolvendo um probleminha pessoal no Hospital e se houver qualquer imprevisto no dia de hoje, a senhora me coloca na linha. Sim, em conferência mesmo... Não! Nenhum problema comigo... Luiza? Também, não... Não se preocupe ela está sabendo, quer dizer... Não a preocupe, Ok? Certo! Qualquer coisa me ligue. Desliguei e tornei a olhar a Heloísa, sentei-me ao seu lado na cama, ela pegou uma de minhas mãos e eu passei a outra em seus cabelos longos, negros e sedosos, como sempre foram. Ela chorou. Ficamos nos olhando por alguns minutos, eu senti sua mão apertar mais forte a minha e choramos juntos.

- Eram gêmeos, um casal, sussurrou depois de algum tempo. Já sabia que o menino sofria do coração e com o acidente não resistiu. Muito embora todos nós devessemos morrer, a menina sobreviveu foi por milagre. Um anjo se encontrava protegendo o outro e o impacto ao cair no chão foi todo sobre ele.
- Gêmeos?! E como assim vocês deveriam morrer? Você fala com se já tivesse a certeza disso!
- Acidentes acontecem...
- Mas este aparentemente foi criminoso, sim? O que te aconteceu? Ninguém me disse nada ainda.
- Bem, eu fui atropelada, logo após descer do meu carro. Fui jogada a poucos metros do chão e caí tentando segurar a barriga sem mesmo esticar os braços para amortecer a minha queda. Eu o vi antes de sofrer o impacto com o automóvel. Depois disso só lembro que um médico e um enfermeiro informaram o ocorrido e saíram. E agora você está aqui. Perguntei por você a cada minuto...
- Você me ligou, precisando de ajuda, se eu não...
- Não! Você não poderia fazer nada. Deixa eu te explicar algumas coisas. Mas, estou muito cansada, há dias que não durmo. Estou bem, mas acho que já estou sob o efeito da medicação. Preciso descansar... mas saiba que estou muito feliz por você estar aqui. Muito mesmo. Agora me sinto mais segura.
- Durma um pouco, trouxe meu escritório comigo hoje. E fui logo armando, ali, tudo de que precisava.

Um notebook, um smartphone, e meu um outro celular. Entre ligações e o barulho do teclado, vez por outra Heloísa se agitava na cama.

Antes de contar minha história com a Heloísa é preciso dizer com uma franqueza descomunal que era apenas esse o segredo que guardava tão perfeitamente dentro de mim. Não foi tão fácil quanto possa parecer, mas até este momento ele se encontrava latente. São tantas as pessoas que afirmam que recordar é viver que é quase impossível não ser arrastado pela multidão dos que compartilham dessa idéia. Me debati numa tormenta profunda e furiosa para chegar a descobrir que a verdade é que esquecer, mais que recordar é uma das condições necessárias a manutenção da vida. E tão logo consegui esse objetivo, ela reapareceu.

Por anos a presença das lembranças da Heloísa em minha vida se tornaram o principal motivo pela letargia branda a qual estive absorto. Mas não por ter a necessidade de sua presença e sim por ter reconhecido que fiz de sua vida o meu único caminho para ser feliz. E ao atribuir que o aprendizado de quase tudo em que acredito se deve ao seu carisma, e seu desprendimento, não fiz diminuir as grandes realizações de minhas pequenas conquistas. Mas é que às vezes duvidamos de nossas próprias forças interiores e fincamos o pé no passado, como árvores, criamos raízes e disso não saímos.

Lembro-me bem da Grande Greve Geral de 86, quando ouvi de um amigo professor uma analogia aos touros cercados em uma fazenda. Por que não fogem? "Porque não sabem a força que têm", afirmava ele. Mas, descobri que a fuga para essa tal liberdade tem um custo muito alto. E nem tudo se consegue à força. E para mim que era até um pouco mais simples em meus sentimentos, foram as lembranças que guardava dela e os incidentes naturais do percurso que me fizeram "zerar" em tudo, e abrir falência de minhas emoções. Graças ao trabalho de monitorar equipamentos eletrônicos em uma estação de TV, anos depois, foi que consegui pouco a pouco recuperar uma lucidez parcial. E foi assim... a cada novo ano, promessas. A cada tropeço, uma nova avaliação do que impedia de alcançar o mínimo de felicidade com a qual os demais que me circundavam pareciam desfrutar. Logo percebi que a atração de tudo nessa vida se faz pelos pensamentos a que estamos mergulhados. E foi isso que promoveu a uma outra mudança significativa em minhas ideias.

Apesar de não me encontrar pensado na Heloísa, especificamente, ultimamente me encontrava envolvido por fortes emoções conturbadoras. Vibrava assim em muitos momentos do dia e agora sei que isso desencadeou o mecanismo universal da lei de atração. Eu já sabia que encontrá-la seria inevitável, mas nessas condições só tornavam as coisas mais difíceis. Apenas uma vez tomou a iniciativa de me escrever após anos sem nenhum contato. Ainda assim, enviou-me um e-mail para um antigo endereço eletrônico que até hoje mantenho. Dizia ela:

Não é mais a distância que me faz, vez por outra, querer lembrar de você, mas sim quando percebo que estou esquecendo de tudo aquilo em que acreditávamos no passado. Já não sei mais no que estou me tornando com tantas emoções fortes que tenho vivido ultimamente. Ando pulando de cidade em cidade, convivendo com a miséria mais cruel, a verdadeira pobreza social, e isso me faz relembrar nossas iniciativas em prol dos que mais necessitavam. Lembra-se disso ainda, Roberto?
Convivendo, agora, com pessoas simples que se debatem em agonia durante toda uma madrugada numa cama, em estado febril, ou terminal por conta do câncer que atinge a essa gente do campo, no mais longínquo povoado, a espera de serem atendidas por mim, passei a repensar o que quero de minha vida, e não é isso. Mas, eu, por meu compromisso, não lhes falto. O que não posso é aceitar as condições que me oferecem. Não é assim que tem de ser. Dou o meu melhor para que alguns cresçam dizendo que administram bem os recursos públicos?! Tudo não passa de uma farsa que a própria sociedade alimenta. A mesma sociedade que cria miseráveis para poder ensinar aos seus filhos a beleza da prática da filantropia. Covardes!
Há momentos em que tenho uma enorme vontade de chorar e eu não choro porque eu simplesmente esqueci como é que se faz isso. No fundo acho que poucas são as pessoas com o real poder de transcender ao ridículo e óbvio destino do projeto humano. E acho que essas ainda sabem chorar nesses momentos.
Um dia quero voltar para a capital, não sei quando. Mas se a porta não estiver aberta, deixe-me apenas uma janela em seu coração.

Beijos,

Heloísa Mayccine

Com grande esforço contive as lágrimas que ainda não sei se são de ódio ou de alegria. Porque dentro de mim, é verdade, reside a paixão por esses temas e que ela tão bem sabia explorá-los quando, também, se fazia de vítima. Forço-me a esquecer dessas palavras, que vez por outra ecoa dentro de mim, desenvolvendo minhas atividades no escritório da empresa. Horas dedicadas ao estudo de novos mercados e a correção dos prospectos de investimentos de todas as outras filiais que me fazem aceitar compromissos os quais me entorpece a realidade. O trabalho como fuga. Perdi as contas de quantas vezes nas confraternizações da empresa era forçado a tomar o microfone, antes de receber uma medalha de ouro, para falar de como suportar a burocracia e alcançar as metas com tanta disposição. Deveria receber era um Oscar de melhor ator, isso sim.

Bom, crescemos em um mesmo bairro, tínhamos os mesmos amigos em comum, mas só nos conhecemos em uma festinha da Calourada. Ali conheci uma jovem decidida pela arte de Hipócrates. Por minha vez eu cedia aos caprichos de Mercúrio (deus do comércio e da comunicação). Lembro bem que uns amigos meus tocavam em um palco improvisado para o evento e o vocalista da banda, não sei se nervoso ou bêbado, errou as letras do repertório da Legião Urbana, o que era um crime hediondo naqueles dias. Uma menina subiu ao palco, empurrou o vocalista pro canto e tomou o microfone, assumindo o show. Os aplausos foram inevitáveis. Ela não só encantava pela postura no palco, mas pela graciosidade com que desafinava. Porém, ria-se disso com tanta convicção que completava a graça daquela apresentação improvisada.

Passou por um repertório um tanto quanto eclético, misturando Nirvana e U2 numa mesma seqüência ilógica que só com o tempo descobri um velho truque para disfarçar que sabia tanto quanto o cantor daquela banda, o breque. Não cantava a letra toda, apenas cantava o que lembrava, sacodia os cabelos, rodava o microfone, pulava agitando os calouros e direcionava-lhes o microfone para que todos cantassem em coro e daí gesticulava para o baterista que dava uma batida forte e a banda parava, depois ela entrava em outra música e a banda seguia, as vezes como podiam. Assim agradava gregos e troianos, disseram uns que pregando a paz com a qual muitos fizeram amor.

Depois daquela festinha, muitos casais se formaram e poucos estão juntos até hoje. Naquela noite até os radicais passaram a acreditar que era possível ouvir samba depois de um trecho de hard rock. Quando lançou-se de seu repertório de rock internacional para as grandes divas da MPB, foi adorada pelas meninas e cobiçada pelos rapazes, principalmente quando desceu do palco transpirando por todos os poros, o que dava para se perceber por sua camiseta branca colada ao corpo.

Percebi logo em seguida que não era apenas suor, e questionei-lhe o motivo das lágrimas. Ela me olhou profundamente como se eu houvesse descoberto um dos grandes segredo de sua vida, e me puxou para um canto atrás do palco. Me beijou com tanta firmeza que deixei o copo sobre o palco para poder abraçá-la e segurar sua nuca para que não parasse nunca mais. Pude sentir todas as suas formas com minhas mãos tempo suficiente até começar o outro show.

Foi quando começaram a pular forçando o copo, com cuba libre, a cair sobre nós. Um misto de choque térmico e elétrico percorreu nossos corpos. Nossas línguas passaram a trocar uma corrente magnética até então desconhecida. Era um misto de surpresa, com sabor agridoce. Começamos a rir quando todo o palco caiu. Ninguém precisou ser socorrido, e nem por isso a festa acabou. Trocamos telefones antes do sol começar a nascer. E ficamos de nos ver mais vezes, para descobrirmos se de alguma forma aquele dia poderia se repetir. Muito embora eu acreditasse que jamais tornaria a tê-la em meus braços. Me enganei, profundamente.

(continua...)

Um comentário:

  1. Com muita sinceridade estou adorando essa historia, me aprofundei literalmente quando menos percebi...(continua...). espero que não demore muito pra publicar o resto da trama, muito interessante:)

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