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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

SOBRE A CORAGEM

Coragem mesmo quem tem é juiz de futebol de várzea.

Quem disse isso foi meu terapeuta. Eu nem sei bem como tudo começou, mas quando fui entrando em um assunto qualquer, ele, por sua vez, me surgiu com essa conversa toda de auto-estima, de reação contra os estigmas sociais que nos impedem a condição de plenitude nesta existência. Que só a dor nos liberta. Que só trabalhando doze horas por dia, matando um leão a cada minuto, é que se consegue dignificar nossas conquistas enquanto agente social e formador de opinião, enfim, – uma existência livre pela própria superação da natureza humana, primitiva. Sabe quem consegue alcançar este estágio? Aquele que tem coragem. E coragem mesmo quem tem é juiz de futebol de várzea, concluiu ele.

Eu saí dali naquele dia mais atordoado do que quando entrei. Não é todo dia que estou disposto a receber pancadas como aquelas. Mas a dor foi um elemento importante para modificar meus pensamentos a respeito da situação em questão e eu absorvi aquelas palavras num processo análogo a osmose.

Em princípio pensei em uma partida de futebol. Que dura algo em torno de 90 minutos. Não que o futebol de várzea dure tanto quanto o profissional. Mas daí a citar doze horas, era um exagero. Passei a semana toda com isso na cabeça.

Quando chegou o dia de voltar ao consultório do meu terapeuta, me esforcei em lembrar o que ele havia dito sobre juízes de futebol. Bolei alguns comentários sobre a questão, mas ao adentrar o recinto, notei sua expressão facial um pouco mais carregada que a de costume. E o seguinte diálogo transcorreu:

- Tá triste doutor Fernando?
- Não.
- Aconteceu algo?
- Não.
- Quer falar alguma coisa antes? Foi por causa dos juízes do outro dia?
- Ex-esposa é como ex-síndico, só é feliz quando vê você se lascando. Desculpe-me a expressão.
- O senhor é síndico doutor Fernando?
- Sou.
- Problemas com a ex-esposa também?
- Muitos, meu filho. Nem queira imaginar.
- E os juízes?
- São favoráveis a ela. Sabe como é a justiça.
- Não eram juízes de futebol?
- Ahn?!
- O senhor não falou outro dia em juízes de futebol?
- Ah! Mas isso era outra coisa.
- E que coisa é homem, pelo amor de deus. Passei uma semana inteira tentando decifrar o que o senhor falou e não obtive êxito algum.
- É simples. Já parou para pensar que em uma partida de futebol de várzea não tem policiamento?
- Não.
- Pois é. E na final de campeonato quando a decisão está por um gol apenas? Já imaginou? Numa partida de futebol de várzea tem de tudo meu filho. Tem torcida organizada, tem troféu e tem dois times querendo vencer a todo custo. Isso é o mais amedrontador. Imagina se algo sair errado, a quem recorrer?
- E por acaso o senhor é juiz de futebol de várzea para estar tão empático a esta questão?
- O pior é que sou sim. E tem uma final neste sábado.
- Valha-me!
- Faço isso para ganhar uns trocados nos finais de semana, sabe. Minha ex-esposa casou-se com o ex-síndico do meu prédio...

Não esperei nem ele terminar.

- Olha doutor Fernando, me desculpa a sinceridade, talvez eu não esteja procurando mais problemas, sabe como é essa coisa de transferência. Eu já estava pensando em não pagar mais essa consulta; eu sei que a situação tá difícil pra todo mundo, mas cada qual com seus problemas. Olha valeu pelas dicas sobre a coragem. Agora eu entendi tudo, de verdade. Outro dia ligo para o senhor para saber sobre o jogo. Até breve! Ah! Vou deixar o cheque com sua secretária. Ok?
- Não, por favor, dessa vez não. É ela, entende?
- Ahn?
- A ex, é minha secretária.
- É o fim do mundo mesmo! Entreguei o cheque a ele e fui embora.

Ao sair encarei a secretária pela primeira vez. Tive compaixão do doutor Fernando. Mas pude perceber que a vida é feita de escolhas e de coragem, como a de ser um juiz de futebol de várzea. Às vezes não dá certo. Mas, mesmo assim, são bons os conselhos de meu terapeuta, só se precisa decifrá-los.

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